Em 21 de Agosto de 1508, o rei D. Manuel elevou a vila do Funchal a cidade. Na carta, que concedeu novo estatuto ao Funchal, o rei mencionou o crescimento da vila, a condição social dos moradores, as grandes fazendas e o comércio. Todos estes factores representam o sucesso do povoamento da ilha, iniciado em 1420. Ainda não havia passado um século e a Madeira era «descoberta» pela Europa e referenciada nas rotas do comércio internacional, principalmente pelo açúcar, o ouro branco desses tempos.
Na carta de 21 de Agosto, não se revela uma outra intenção do rei, subjacente à criação da cidade do Funchal. Na verdade, D. Manuel pretendia instituir um bispado na ilha, o que implicava a elevação da vila do Funchal a cidade. Desde 1493, estava em construção a Sé. Em 1514, foi fundada a Diocese do Funchal.
Nestes 516 anos, o Funchal enfrentou muitos sucessos e dificuldades. Os sucessos advieram, em especial, das produções agrícolas para exportação, como o açúcar, o vinho e a cidra, e da beleza das paisagens e da amenidade do clima que deram origem ao Turismo.
A maioria dos funchalenses não beneficiou da riqueza produzida. O regime de colonia foi o empecilho maior, extinto oficialmente só em 1977. O analfabetismo e o obscurantismo cultural e religioso impediram igualmente a mobilidade social e a distribuição da riqueza. A miséria, associada a uma esperança de melhoria de vida, determinaram a emigração.
Peste, epidemias, saques de corsários e piratas, aluviões, incêndios, sismos, ataques de submarinos alemães na Grande Guerra, a Segunda Guerra Mundial e a paralisação do Turismo, desemprego e fomes... originaram períodos muito difíceis para o Funchal. Medos que a memória guardou. Mas, com tenacidade, o Funchal tem sabido reerguer-se.
Nos dias de hoje, paira ainda a ameaça de alguns males que, no passado, atormentaram os funchalenses. E outras novas preocupações surgem.
A paisagem e o património arquitectónico, com valor histórico e cultural, estão ameaçados pela ganância, a falta de planeamento urbano, o incumprimento do que legalmente está determinado ou as excepções intencionalmente criadas, para novas construções. Continua-se a rasgar as entranhas da ilha, sem pensar no futuro.
O excesso de turistas apresenta-se como nova realidade, que implica maior consumo de água e energia eléctrica, mais importações, mais automóveis, mais trânsito, mais poluição, mais lixo e mais dejectos para tratar. Menos habitação, menos sossego, menor acesso dos moradores aos locais aprazíveis.
O alojamento local, legal e clandestino, contribui para a destruição do mercado de arrendamento e promove a inflação ou especulação imobiliária. Uma projectada alteração da lei (projeto de decreto-lei do Governo, aprovada no Conselho de Ministros de 8 de Agosto), irá dispensar a autorização prévia dos condóminos para a instalação de uma unidade de alojamento local num apartamento de um imóvel, em regime de propriedade horizontal, no título constitutivo destinado à habitação. Se a atual legislação vier a ser alterada, como pretende o Governo de Luís Montenegro, muitos moradores em prédios de propriedade horizontal perderão o sossego e a tranquilidade a que estavam habituados. Tudo em nome da servil hospitalidade ao forasteiro.
Para além da habitação, e entre muitos outros, enumero como um dos principais obstáculos à cidadania do funchalense, os entraves à liberdade de expressão. Muitos têm medo de se pronunciar sobre determinados assuntos, pelas represálias a que ficam sujeitos, os próprios e até os seus parentes. Os poucos que têm a coragem de manifestar a sua opinião são perseguidos e ostracizados. Não é fenómeno recente, mas verifica-se desde há décadas. Só que agora constitui procedimento mais descarado. Por tudo e por nada, surgem ameaças de queixas-crime por suposta difamação ou calúnia, quando, simplesmente, os cidadãos usam de um direito constitucional para expressar o que lhes vai na alma. Triste é ver jornalistas a aplaudirem esta aberração.
Os políticos, governantes e dirigentes devem cultivar um certo poder de encaixe, que faz parte da civilidade democrática, a fim de se evitar uma cidade de amorfos e o entupimento dos Tribunais com processos que resultam, quase sempre, em nada. O facto de ocuparem um determinado lugar ou terem (ou terem tido) uma certa posição não lhes confere uma redoma de cristal, onde guardam a sua intocabilidade. Eticamente, não lhes assiste o direito de se servirem, gratuitamente, dos juristas e recursos dos seus serviços para pleitos, à partida, condenados ao insucesso.
A crítica justa e bem fundamentada elimina a mentira, a meia-verdade (que é sempre uma mentira) e o embuste. Promove a dignidade e uma melhor governação. Eleva a cidadania.
No Funchal do século XXI, habitam, em democracia, cidadãos, e não servos ou súbditos.
Termino com versos do grande poeta madeirense José Agostinho Baptista, esquecido ou ignorado por muitos funchalenses, mas que entre nós vive, e, para mim, foi quem escreveu o mais belo poema dedicado ao Funchal:
Deixámos cair os braços.
De braços caídos bebemos uma taça mortal e em cada
taça havia uma lâmina que descia.
Cantámos em desarmonia e era uma canção de muito
longe, eram palavras de fino gume, mutilando os
lábios.
Na pedra do cais quebrámos as bússolas, ouvimos a
maré.
Passados 516 anos, que saiba o funchalense preservar e amar a sua identidade e, simultaneamente, ver para além do cais e da ilha, como a criança de José Agostinho Baptista:
E a criança afastava os braços e a cidade entrava
e era uma cidade aturdida,
com os navios que partiam.
Eu ia sempre nos navios que partiam.
(Funchal. In ‘Canções da Terra Distante’, 1994)
Créditos: "Funchal Notícias"
Link original: https://funchalnoticias.net/2024/08/21/funchal-entre-a-ventura-e-a-escuridao/