Foi há muito. Num anoitecer de Outubro, de um molhe de saudade e pedra, um barco sonâmbulo zarpou e trouxe-me, louco de dor, ao estuário de uma península. Passaram meses, anos, décadas, quando insensíveis formas do tempo, lâminas de frio, sombras do mundo, sóis que se foram apagando pouco a pouco, procuraram, sem compaixão, inexoravelmente, os meus passos à deriva. Mas ninguém seguia os meus passos nesse tempo que passava.
Só, caminhei pelas ruas, bebi, tropecei, escrevi poemas que convocavam os abismos, desci aos confins da terra, olhei para o céu, vi o anoitecer em praças de uma insuportável melancolia. Vi o amanhecer entre as ruínas. Vi-os desaparecer, um após outro, irremediavelmente, os sonhadores, os que sentiam muito, os que se detinham numa praia ou numa estrela. Chovia, às vezes, lá fora. Chovia sempre nos meus olhos que viam. Caíam os pássaros e as folhas à minha volta, e nem um lamento, um grito, uma faca de amor ou de raiva nos ombros da noite. Era um destino de silêncios atrozes. Nada se ouvia.
Viajei debaixo do azul sobre o vulcão, perdi-me em Veracruz, Oaxaca, Chiapas, Cuernavaca, Guadalajara, Yucatán. Abracei os irmãos entre infinitas candeias de uma fé desmedida. Ouvi os sinos. Cantei em surdina. Na Capilla Real, nas igrejas de San Juan de Dios e de Santo Domingo, ajoelhei-me e rezei. Abençoada seja esta terra, disse depois, a medo, para os demónios do mezcal. Fixei residência eterna no desespero das cantinas. Ou eram apenas um sonho todos esses lugares mágicos, essa pátria de fogo, à qual me prendi?
Deambulei por Madrid, Granada, Córdoba, Sevilla, Cádiz, Salamanca, Cáceres, Oropesa del Mar, por tantos caminhos cuja geografia esqueci, (lembras-te, Miguel, meu amigo que agora te sentas nos altos alpendres do ar?, lembras-te, Hermínio, das serras de Guadalupe, da festiva luz das Huertas e da Gran Vía?), andei por pueblos de moradas incertas, pelas longas planícies de Castela e Andaluzia, pelas praias de Setembro quando mais doce era a sua luz. Era aí, e em Punta del Moral, Isla Canela, Tavira, no entardecer do Verão, numa casa ou numa duna voltada para um horizonte de salgada neblina, que a minha voz dizia, quase em murmúrio, não quero morrer.
Sobrevivi num país que se apagava lentamente, distraído da vida e da candura, distraído da alegria, numa capital de fados e misérias, num cais de onde, às vezes, ainda partiam os navios em cujo convés nunca fui, de pé, como um homem do mar, cantando entredentes a canção dos marinheiros sem porto, sem mães, sem amadas, a eterna canção dos órfãos que vagueiam pelos dias do Sul. Acompanhava-me sempre a música, a que amava e a que em certas noites de inquietude e insónia, ainda se ouvia nas imediações de um rio de águas turvas.
Em Dezembro, a 25, partiste para sempre, pai. O pequeno presépio guardava alguns pastores, uma ovelha, um burro, uma vaca, e outros animais da ternura. Tinha azevinho, laranjas, dióspiros, vagas plantas da criação, esse presépio ao canto de uma sala. Tinha lâmpadas que acendiam a nostalgia. Tinha uma insinuação de bondade e oferendas. Tinha uma longínqua recordação de genebra e tangerinas, junto a um mercado de lavradores e frutos da amargura. E então eu disse: nunca mais será natal no coração daqueles que partiram.
Vi como se perdia a minha fé nos homens e nas suas palavras, nos belos ideais das gerações traídas. Vi as armas impiedosas de uma demência instituída. Vi a morte sobre as areias, no meio do Oriente. Como uma angústia anunciada, o fogo caía dos céus. Tudo ardia. Havia um brilho vermelho e negro e depois as cinzas. Ondulavam bandeiras com a cor do sangue e cinquenta estrelas. Nos ecrãs do entorpecimento, víamos as casas que se desmoronavam. As cidades, os habitantes, as estátuas, tudo se desmoronava. Entretanto, os rios secavam. Alguém, com devoradoras mãos, arrancava as árvores, e nas águas da infância do mundo sucumbiam os peixes de prata e as aves sem mácula. Então, voltei-me para Deus e procurei na sombra dos seus templos alguma paz para os meus olhos muito cansados. Perguntei-lhe pelo destino dos povos e das rosas. Perguntei por mim. Mas o seu silêncio era como uma pedra imensa, um fardo de escuridão sobre as minhas costas.
Voltei, dezanove anos depois, ao lugar do meu nome. Era uma ilha. Uma ilha que crescia impensadamente, esquecendo a essência da sua pele e da sua água nas águas que desciam. Estremeci. Procurei, entre as ribeiras e as primeiras vinhas, o rasto de uma criança que regressava. Encontrei asfalto, basalto, guindastes, túneis que atravessavam os campos de uma memória perturbada e equívoca. Pouco fumo saía das chaminés ao fim do dia, nas vilas quase adormecidas, mas ainda havia um estranho silêncio nos quintais, frutos, melros, e alecrim quando a tarde caía. Ainda havia hortênsias, faias, trigo, buganvílias e, à entrada de uma aldeia, o doce aroma dos figos amadurecendo. Nem tudo se perdeu, pensei, enquanto sorria. Reclinei-me e olhei para dentro. Mas dentro de mim era muito fundo.
Sobrevivo num verso, num sonho de casas abertas ao vento, no Faial, na Ponta do Pargo, em São Jorge e no Porto da Cruz. Amo o sol, as luas cheias de todo o ano, as vinhas inclinadas numa terra de paixão e, no que resta do meu amor, há uma orquídea, alguns rostos, um terraço, um cão e, nos espelhos que se ocultam no meu peito, revejo as estações de cada ano mas já não pergunto onde estás, onde estou, que será de mim.
Faz-se tarde, cada vez mais tarde, cada vez mais depressa, e ao abrir todos os mapas leio os sinais da minha alma nómada. Fecho o coração. Ainda escrevo para ti, leitor sem endereço, que folheias um livro de enigmáticas pétalas que neste Inverno da vida caem com fragor. Não te conheço. Não bebes comigo, junto a um ancoradouro distante, as destilações do mundo.
Falo com as últimas aves.
Ao observar, em cada crepúsculo, a luz que se apaga num horizonte de extrema desolação, uma lágrima furtiva desce a minha face febril. Tenho medo. Recordo o amor, os amigos, os cães, e é como se tudo tivesse sido em vão.
Além-mar, talvez outra ilha me espere, talvez um anjo me procure, desesperadamente, sobre as fragas.
Até quando?
José Agostinho Baptista