Até agora, a obra maior dos Seiscentos Anos do Descobrimento do Porto Santo e da Madeira foi, em meu entender, ‘Epílogo (Poesia Reunida)’, de José Agostinho Baptista. Contudo, não tem a chancela oficial dos Seiscentos Anos.
Só associo esta edição à data tradicional do centenário da efeméride, porque veio a lume em 2019. Por coincidência (ou talvez não!), ostenta o ano (ou talvez não!) do Sexto Centenário do início da ocupação portuguesa destas ilhas.
De acordo com diversas notícias publicadas na imprensa regional, este magnífico livro é um enjeitado da Comissão Executiva da Estrutura de Missão para as Comemorações dos Seiscentos Anos do Descobrimento da Madeira e Porto Santo. Enfim, contas tristes de um longo rosário...!
Apesar desse feio imbróglio, ‘Epílogo’ ergue-se como monumento grandioso e perene destas ilhas atlânticas e da insularidade. Ninguém, como José Agostinho Baptista, cantou tão bem a Ilha. Ademais, a sua obra entrou já no cânone literário de língua portuguesa.
‘Epílogo’ reúne os seguintes livros: ‘Deste lado onde’ (1976); ‘Jeremias o Louco’ (1978); ‘O Último Romântico’ (1981); ‘Morrer no Sul’ (1983); ‘Auto-retrato’ (1986); ‘O Centro do Universo’ (1989); ‘Paixão e Cinzas’ (1992); ‘Canções da Terra Distante’ (1994); ‘Agora e na Hora da Nossa Morte’ (1998); ‘Anjos Caídos’ (2003); ‘Esta Voz é Quase o Vento’ (2004); ‘Quatro Luas’ (2006); ‘Filho Pródigo’ (2008); ‘Caminharei pelo Vale da Sombra’ (2011).
No entanto, não se apresenta como a obra completa do poeta. Aliás, o subtítulo é elucidativo: ‘Poesia Reunida’. Não foram incluídos: ‘Debaixo do Azul sobre o Vulcão’ (1995); ‘O Pai, a Mãe e o Silêncio dos Irmãos’ (2009); ‘Assim na Terra como no Céu’ (2014).
Para José Agostinho Baptista, estes três livros não habitavam «como todos os outros a geografia plena e coerente da [sua] poesia em verso, iniciada e continuada como um rio que traçou indelevelmente as suas margens e correu em consonância de tempo e inspiração para o seu destino final, para o seu epílogo decidido pelos obscuros desígnios do Cosmos ou de Deus.»
Poeta de vivências insulares e, em especial, de nostalgia por lugares e memórias, na distância sonhou e desenhou paisagens numa linguagem intimista e sublime: «Tudo acaba na sedução das cadeiras, / das páginas onde soletramos um sonho atlântico, / o ancoradouro que nos prende: / ainda que o digas não partirei – / conheço a nostalgia que vive para sempre no coração da / infância e dos barcos.» (p. 300)
A visão da ilha a partir do exterior, mas fortemente acalentada no íntimo, originou um texto poético marcado pela «transfiguração do real» e pela «fuga para uma certa espiritualidade e para um mundo ideal em confronto com o mundo real», como um dia o poeta disse da sua poesia (Entrevista a Maria Augusta Silva).
Atente-se, como exemplo, o belo poema «Porto da Cruz», do livro ‘Quatro Luas’:
Foi aqui,
diz uma voz ao longe,
que, muito depois, ouviste a canção da tua vida,
a água que ainda corria numa levada sem a
morte das cidades que abandonaste.
Aqui viste,
quando as tardes se fechavam pouco a pouco
como um livro de palavras ternas,
o teu rosto que os anos atravessaram de rugas.
Aqui ouviste,
junto aos barcos parados,
a incessante música dos pássaros sem nome,
aqui bebeste
num balcão de faia e fogo lento,
as canas doces da tua loucura. (p. 892)
Em toda a poesia de José Agostinho Baptista avulta a terra-mãe, associada a desesperada lembrança ou incerto reencontro com o punhado de infância e de juventude, inatingível, alterado ou desaparecido. Com casas e lugares vazios ou transfigurados. Com sentidas ausências.
«Nunca fomos deste mundo, dir-lhe ei por fim, ao fechar / a última porta.» Eis o verso final, e com tamanha força agora no contexto da obra que o poeta acredita ser a última da sua lavra.
‘Epílogo’ revela-se como longo cântico à Ilha-Mãe, construído com rara sensibilidade e paixão durante mais de quarenta anos, cheio de raízes, esperança e desânimo, saudade e gratidão, permanência e despedida, inquietação e tranquilidade, angústia e fé. Povoado de pessoas e lugares de uma geografia de afectos delineada quase sem rodeios. Imagem de uma fonte que secou de tanto brotar, de uma casa agora vazia, de flores e frutos que perderam, entretanto, o sentido. Apogeu da entrega do poeta. A sua dádiva maior. Abrigo também da renúncia ou da pausa decretada pelo fado e o tempo, porque o tal rio com margens bem traçadas desembocou finalmente no mar. E nunca mais chega ânimo para voltar a partir para onde novo rio possa vir a nascer e correr.
BAPTISTA, José Agostinho – Epílogo (Poesia Reunida). Porto: Assírio & Alvim, 2019. ISBN 978-972-37-2056-3.
Créditos: "Funchal Notícias"
Link original: https://funchalnoticias.net/2020/02/05/epilogo-de-jose-agostinho-baptista/