UM SOPRO, UMA LEVE PANCADA NO CORAÇÃO


por José Tolentino Mendonça

“Um sopro, uma leve pancada no coração” é um dos versos da Biografia de José Agostinho Baptista e, de alguma maneira, o primeiro verso de todas as biografias. Já poemas muito antigos contam isso: no princípio da vida está um sopro, uma misteriosa respiração. A alma que permite viver, é esse animus, secreta morada de um hálito, “leve pancada no coração” do tempo.

Mas esta declaração é logo esclarecida (e, reparem, não contradita) pelo que se segue: “agita-se dezembro e a tenra flor, agita-se / o caule, a haste, o esguio corpo e / as sombras, porque tudo são sombras e / estas são as sombras”. Está assim esboçado o destino deste estremecimento. Não sei de outro igual na poesia portuguesa.

O que faz de José Agostinho Baptista um grande e “solitário príncipe”, é esta radical investigação da vida, frágil e breve como um “sopro”, e intensa e interminável como um “sopro”, um murmúrio que pudesse ser desprezível e divino, cada vez mais ténue e cada vez mais poderoso. Pois quando nos aproximamos do fim, não é só do fim que nos aproximamos, mas também de uma pulsão mais estonteante do que aquela que os quotidianos consentem, de um latejar subterrâneo de mil veias com que a existência se revela, do esplendor da recuperada (ou nunca perdida) infância. Como nesse magnífico poema onde se conta a morte do pai: “Deixas inclinar a cabeça para o lado onde a / obscuridade ou a calma trazem a evocação dos / prados, / como se houvesse um regato nesta almofada de / pétalas queimadas / e o rumor dos eucaliptos distantes voltasse de /repente / e sobre as veias da tua árvore nua corresse / uma seiva transparente, / uma pura imagem de lagos tranquilos, / como um cisne de vidro, resplandecendo”. A perda torna-se, assim, o improvável lugar onde se entrevê de novo tudo o que perdemos. E, por isso, esta poética que se assume como uns “cuantos adioses al borde del precipicio” (José Agostinho Baptista a citar Octavio Paz) é também, como poucas, obstinada demanda das próprias nascentes, fala primordial, pensamento do início.

É verdade que “nada conduz a nada”; que “todos os caminhos são o caminho de uma lágrima”; e com apenas “um gesto se esquece a coloração dos dias”. Mas “ao fim do caminho, de todos os caminhos, / há sempre uma ilha, a ilha, ilhas de assombro”.

As circunstâncias do espectáculo político dominam, e, às vezes mesmo, esgotam a representação dos lugares. O arquipélago da Madeira não foge à regra. Por isso, não sei quantos anos vão passar até que se reconheça o óbvio: a relevância da Madeira foi, neste século (XXI), sobretudo cultural. Uma relevância incómoda até porque escapa às explicações, e não é fruto de medida ou expectativa nenhuma. Foi assim. Como aquelas conjugações arbitrárias em que a natureza é pródiga.

Nunca saberemos bem que forças imersas se foram alinhando, por gerações; que engenho cedeu ou se prolongou; que cartografia a vida do espírito manteve. Mas — podemos jurar — é tão grande, é tão verdadeira a beleza da luz trazida por Edmundo Bettencourt ou Herberto Helder ou Lourdes de Castro ou José Agostinho Baptista.

Um dia, talvez os poemas de José Agostinho Baptista sejam considerados indispensáveis para entender a Madeira: a rugosidade do seu tempo, o arrebatamento desmedido da paisagem, as ribeiras inacessíveis, o mistério dos frutos, a verdade desamparada do seu silêncio. Porque “ninguém saberá o que isto foi um dia” se julgar que tudo se passa “no ardil dos salões” e não nas fajãs remotas, onde ninguém se atreve a permanecer, nas “ruas estreitas, inclinadas como as buganvílias”, numa luz muito alta, nas coisas cultivadas e lentas, nas mães da ilha, que são belas debaixo do céu, na música que é quase o vento, nos navios que vemos partir nos terraços que dão para o sul.

Um dia, talvez não distante, se reconheça que o impressionante trabalho de criação poética de José Agostinho Baptista resgata a Madeira da condição de região periférica (ou ultra-periférica, segundo a catalogação de Bruxelas e a coloca no centro de um universo admirável. A ilha é toda a terra. E, no segredo escuro do seu nome, ela guarda a ambivalência mais significativa, o balanço destes dois versos extremos, onde a vida inteira se inscreve para se apagar e se apaga para inscrever-se: “Estiveste aqui, desejaste a sublime divagação das / primeiras aves. /Eras o desejo, / uma esplendorosa luz ao anoitecer dos labirintos” e “Ninguém me chama. / Ninguém me conhece. / (...) Não, tu não passaste por aqui”.

Ou talvez, por muito que nos custe, nada disso aconteça. E os livros desapareçam. E os poemas, os melhores poemas, não resistam ao cerco diário do esquecimento. E a vida se torne uma escrita fútil, palavrosa, uma ilegível penumbra. Mas se assim for, que a nossa língua se cole ao céu da boca e a nossa mão direita fique ressequida.