Por Francisco Javier Vera Haris
O livro de poemas de José Agostinho Baptista, reunidos sob o título Ahora y en la hora de nuestra muerte é a tentativa vã de recordar a infância para tomar o pulso a um presente sem futuro que se dilata insuportavelmente, que procura, mais do que vãos poemas elegíacos, um bilhete de regresso para o nada.
Moré en el silencio, apagué las claras fuentes/ de una torturada voz./ Y el brillo del cuchillo,/ su metal de esplendoroso alcance,/ encontró el pulso y se movió,/ dulcemente.
Pelo menos, no meu caso, a equação existe. Quando se é feliz, quando não se sente a vida como pesada carga, quando não há uma marca feroz envenenando a alma, não se escreve, vive-se simplesmente. Mas quando nos sentimos lançados ao mundo para sermos menosprezados -- oh, tu, poeta, homem, o sábio, o eleito!, ou, pior ainda, para ser o infeliz, o bode expiatório, o saco de paus de uma pinhata urdida por fantasmas de aço que celebram sangrentas orgias sobre o nosso pobre corpo transformando-o em altar de sacrificios, então não se vive, febrilmente escreve-se, com a dor, a raiva, para sobreviver.
Muitas vezes, a poesia é o produto da infelicidade, o necessário canto do louco para não matar ou não se matar, a pedra do delito que uma alma atormentada levanta contra Deus. José Agostinho Baptista, como toda a criança que sonhou ser Deus, é um maldito, e a sua poesia tem a virtude irresistível do canto do cisne quase a expirar, desencantado. A sua cruz é a orfandade, a orfandade do pai-deus e também a orfandade do paraíso onde aquele morava. A criança sente a falta do jardim do paraíso, daquela casa-castelo, com capelinha e tudo, onde a liturgia dourava os sonhos, daquela sua ilha povoada de exotismos, daquele conto de príncipe herdeiro de um herói mítico que desfrutava tudo, que bebia tudo, que tudo tinha, como se a vida inteira estivesse ao seu serviço, disposta a deixá--lo fazer tudo -- animal tão belo!-- entre o céu e o mar, como um titã atlãntico e divino. Mas o seu pai morreu. E agora é a ausência daquele sonho, daquela fábula, o que invade tudo. Éramos tão felizes!, diz o poeta. Éramos tão felizes!, responde-lhe o eco. A ausência e o silêncio do pai emudecido para sempre, que quando lhe quis falar já não pôde, porque a morte lhe roubou a voz e os violinos, e lhe deixou a angústia como condenação que o afastou de uma criança toda olhos que viu a morte ao rubro, violada a esperança e branca para sempre a ambulância que lhe atinge a alma com a sua sirene, até o deixar à beira do abismo.
Branco, branco, branco. Vida a branco, que é também vida a negro, colorida às vezes por frutos e paixões, por brisas, por canções, por aromas do que podia ser a felicidade. Ou por um barco que parece viajar para algum sítio até por fim ficar varado para sempre no nada. Chispas na névoa permanente da recordação feita palavra. ...diría que se han alejado para simpre los/ dias antiguos,/ sus naranjas, el agua.
Mas no fim é a morte que vem corromper tudo com a ferrugem amarela que a chuva deixa no ferro mal temperado da vida. As noites são agora o reino da insónia, do pesadelo: o pai como um vulto silencioso, no meio de uma paisagem invernal, desabitada. A vida detida na densa vegetação que faz crescer o pranto que nos afoga. A música, algaravia reiterada como chuva tristíssima sobre o mar insondável. A febre omnipresente, incendiando tudo. Sed, sed (... )/ levántame, hijo mío. A obsessão de uma frase: ...llévame para las montãnas, tráeme las/ manzanas y la nieve.
A ambulância e a urgência enlouquecendo o mundo. O Inverno perpétuo carregado de silêncio, que é medo e é ausência. Os caminhos de Deus conduzindo a nada. ...estes son los caminos que van hacia el más allá;/ el desierto está al final.
A Primavera morta para sempre e com ela a alegria e os pássaros e a água. O olhar no chão, à altura do pó que é o seu pai perdido, um girassol sem sol voltado para a terra. O amor impossível quando já não existe paraíso onde gozá-lo. O luto na vida como o corvo. A escrita já um bálsamo sem obra. Um crepúsculo eterno esta noite que espera ...al visitante de las estepas,/ su boca de hielo y el vacío.
Os cadernos mudos, incapazes de captar o calor, a alegria, a inocência, o mistério que a vida tinha, cadernos de palavras, palavras e palavras que nada significam, que nada ressuscitam. As viagens, incapazes de nos povoar a alma, só conseguem tornar-nos mais extensa a mágoa. O poeta está condenado à escuridão, à recordação de gritos obsessivos, à metamorfose do vento em lamento e da chuva em medo. ...el mar es negro y sube hasta el cielo y después cae,/ como la gran soledad, sobre las espaldas./ En frente, en la colina del terror, tu hijo/ llora.
Toda a liturgia é vã para recuperar um paraíso perdido, um tempo de celeiros e marés vivas, de desejos insatisfeitos. O poeta chegou tarde à vida -- a vida do pai -- , quando já o trigo e o fruto maduro tinham sido devorados pelo tempo, como um cristo imolado. ...y yo era aquel que llegaba después del trigo,/ con la cruz a cuestas.
O desencanto instala-se para sempre na sua vida. Sem o pai, sem o legado do pai, com o silêncio sempre presente do pai, com a ausência do pai e do segredo nunca transferido, viver já não é viver, é uma morte adiada sem sentido, uma ferida profunda que nunca cicatriza. ...y la herida no cicatriza y el día nos/ conduce a la orilla de los túmulos.
Desencantado, desamparado, ao poeta só lhe resta a cinza, a recordação do que podia ter sido e não foi. Quando tenta voltar à sua ilha perdida -- se o permitir o medo de voar -- o edifício da sua infância, da sua juventude, continua a erguer-se perante os seus olhos como um fantasma com o qual não se atreve a confrontar-se. Por isso o poeta resigna-se a viver definitivamente. ... con las lágrimas que no puedo contener, que no/ puedo desterrar de esta vida mía perdida,/ corroída por miedos, ansias e la añoranza de/ todo lo que no pudo ser,/ enloqueciendo en esta jaula,/ enloqueciendo en esta plaza donde estamos solos,/ y la palabra es una serpiente, al acecho./ En el desirto, a tu lado un léon duerme.
Talvez apenas uma porta aberta à esperança ou pelo menos à sensatez de aceitar a vida como é. O poema intituladoMadre é uma profunda reflexão sobre o sentido da vida. Ao contrário do pai e do filho, homens enfim, fumo que se dilui em sonhos de grandeza, alheio à matéria-prima da vida, do húmus necessário para a fazer crescer, a mãe simboliza o sentido da vida. Ela está no segredo dos seus homens, dos seus filhos, ela vela-os, ela dirige-os, ela protege-os, ela dá-lhes a vida e traz-lhes a morte. Ela é ciclo lunar necessário e desperto. A que põe as coisas no seu lugar, a que ordena o delírio dos seus homens, a que impõe a paz e a sensatez, a que ajuda a aceitarmo-nos como somos. Belo poema, amplo remanso de calma no rio revolto do masculino egocentrismo -- tão ridículo, tão patético, tão inútil, tão gratuito, tão belo -- , enlouquecido do pai e do filho e do espírito “ non sancto “ que os leva a desvairar como anjos -- pobres anjos ! -- desterrados.
Madre
Soy aquella que los ve./ Y camino por sus caminos y soy la/ hoguera distante./ El tiempo no me apaga./ Tengo los puntos cardinales y soy la brújula en/ sus manos,/ cuando ellos van sobre las aguas./ Soy los mapas, la constelación, el crucero del sur,/ el arado, el perro,/ aquella que los protege./ Soy el regazo, las bellas plumas de mi regazo,/ la inmensa luz de amor que cae sobre su/ penumbra,/ sobre su locura./ Soy la madre de su vida, de su muerte./ Y voy con ellos, esparciendo las rosas tristes,/ y mis cabellos esparcem sobre sus/ cabellos las raíces blancas./ Soy aquella que escribe cuando ellos duermem,/ soy las palabras a través del sueño./ Y me adormezco con ellos cerrando las últimas puertas.
Edita Olifante, primorosamente. Literalmente, traduz Antón Castro. E a ti, leitor, resta-te ler saboreando, como um bom vinho, a colheita de angústia e de beleza que a vida deixou em alguém como tu, tão louco e tão frágil, tão pequeno e tão ousado, tão homem e tão poeta como tu. No fundo.
EL PERIÓDICO DE TARAZONA
ZARAGOZA
2001